Maus Tratos na Infância


Ao escrevermos sobre o tema de maus tratos na infância, estamos conscientes do mal-estar que isso provoca a quem nos lê. Enquanto profissionais sempre que falamos em maus tratos salientamos a necessidade de estarmos atentos para uma realidade que está em constante crescendo nas famílias, independentemente da sua classe social, económica, cultural ou religiosa. Infelizmente são cada vez mais os casos conhecidos pelos técnicos que trabalham de perto com bebés, crianças e jovens, o que cria a necessidade de alertar o maior número de pessoas para uma realidade que às vezes pode estar muito mais próxima do que podemos imaginar.
Ao afirmarmos estar perante uma situação de “maus tratos”, conceito que deixa espaço para diferentes interpretações, devemos considerar todo e qualquer tipo de negligência, abuso ou agressão física, psicológica ou sexual, que possa prejudicar a sua saúde e o bem-estar, ou interferir no desenvolvimento normal do ser humano.
De um modo geral, encontramos crianças mal tratadas em quaisquer idades mas, se nos focarmos na faixa etária dos 0-6 anos, sabe-se que é na primeira metade, 0-3 anos, que o número de casos aumenta significativamente ocupando dois terços dos casos conhecidos e identificados! Como o bebé não anda e não fala, não reage nem se defende, e como tal não consegue fugir nem denunciar, acaba por tornar-se uma vítima perfeita!
Apesar da investigação que tem sido levada a cabo dentro desta temática tão dolorosa para todos, é ainda difícil encontrar causas para que um tão elevado número de crianças sejam vítimas de situações de maus tratos, sendo igualmente difícil identificar um perfil para quem maltrata. Factores individuais como depressão, instabilidade emocional, consumo de substâncias psicoativas ou doença mental, e factores ambientais como a existência de problemas conjugais ou relacionais, desenraizamento cultural ou isolamento social, más condições de habitação com ausência de privacidade, parecem, ainda assim, ser facilitadores à ocorrência dos mais diferentes tipos de maus tratos.
Especificando um pouco mais em detalhe os tipos de maus tratos considerados, e começando pela negligência, importa explicar que é uma forma de mau trato em que o cuidador da criança não é capaz de: 1- Garantir o cumprimento das necessidades básicas de alimentação e higiene, os cuidados médicos e educativos, ou a permanência e vigilância necessária às suas diferentes actividades ou comportamentos por períodos longos de tempo (negligência física); 2- Assegurar as suas necessidades emocionais, privando-a de afecto ou suporte emocional estritamente necessário ao seu saudável desenvolvimento (negligência emocional ou psicológica); 3- Acautelar a frequência da escola em idade obrigatória ou contribuir para o absentismo escolar promovendo hábitos e rotinas que interfiram com a educação (negligência educativa).
No que se refere ao abuso ou agressão, podem definir-se três factores: 1- Quando envolvem agressão física, o tipo de abuso que mais é associado pelo senso comum aos maus tratos, como por exemplo bater, queimar, morder, puxar cabelos, … (abuso físico); 2- Quando são utilizados ataques verbais ou insultos, ameaças, hostilizações ou inferiorizações, castigos como deixar fechado em “quarto escuro” ou noutros locais ou ambientes que ameacem emocionalmente a criança (abuso psicológico) e que é a situação de maus tratos mais difícil de identificar; 3- Quando existe envolvimento por parte da criança em qualquer actividade sexual, desde presenciar conversas obscenas, exibir ou manipular os órgãos genitais, mostrar conteúdos pornográficos, prática de relação sexual, … .
Quando desde pequenos vamos construindo a nossa própria imagem e atribuímos o nosso próprio significado à palavra Criança, naturalmente a fantasiamos como um ser humano bem cuidado, que brinca e que cresce saudável no seio de uma família que lhe dá o afecto e a segurança necessários ao seu melhor desenvolvimento. A verdade é que este simbolismo apenas se torna parcialmente real, sendo em grande parte das vezes no seio desta família, ou muito próximo dela, que surge o abandono, o abuso, o mal trato.
Assim, é da máxima importância estar alerta para sintomas físicos como má nutrição, lesões, equimoses ou hematomas, marcas ou queimaduras; ou psicológicos como crianças cheias de medos, que se isolam, protegem ou refugiam excessivamente quando interagimos com elas.
Em pleno século XXI, somos confrontados com situações de autêntica barbárie, levadas a cabo contra as nossas crianças, “justificadas?!” por crenças culturais ou religiosas, por ideologias “educativas?!” ou simplesmente por motivo nenhum. Talvez nos estejamos a esquecer que essas mesmas crianças serão adultas amanhã e que transmitirão às gerações futuras aquilo que aprenderam…
Alertar para estas situações não é nem pode ser apenas uma tarefa para os especialistas, sendo dever de todos sinalizá-las no exercício do dever de cada um enquanto cidadão activo e responsável. Às vezes por medo, outras vezes por estarmos menos despertos para este tipo de situações, acabamos por nos tornar cúmplices para o prolongar do enorme sofrimento pelo qual passam as nossas crianças, esquecendo-nos que um simples contacto para as instituições que oferecem protecção à criança (Autoridades policiais, tribunais, Comissões de Protecção – (CPCJs, etc) pode ser suficiente para pôr fim aos maus tratos e dar início a um novo caminho que aquela criança por certo será merecedora.
Dr. Diogo Pinheiro
Psicólogo Clínico
ESTIMULOPRAXIS – Centro de Desenvolvimento Infantil